terça-feira, 1 de maio de 2012

Balada de Gisberta






Gisberta, nascida Gilberto Salce Júnior na cidade de S. Paulo, Brasil, há 46 anos, acabou morta no fundo de um fosso malcheiroso. A "mulher belíssima, muito cuidada, profundamente feminina e dócil", que chegou a Portugal há uns 25 anos, agonizou mais de 48 horas até soltar o último bafo de vida. As notícias anunciaram a morte de um homem, mas é no feminino que a tratam as associações que privaram com o transexual e lhe prestaram auxílio: "Era uma senhora", diz Raquel Moreira, do Espaço Pessoa, que lidava com "Gis" há quase dez anos.

Umas duas semanas antes de ser violentamente agredida no parque subterrâneo que lhe servia de casa, Gisberta confidenciou a uma técnica sobre "uns miúdos que de vez em quando apareciam na obra e se metiam com ela", embora não tenha referido qualquer agressão. Aconselhada a sair, afirmou apenas: "Posso estar muito mal, mas continuo a ter a força de um homem, não vai ser por causa de uns miúdos..." Mas Gisberta há muito estava débil, fruto das maleitas do HIV e da hepatite, que a deixavam cada vez mais fragilizada.

Foi-se alterando o acompanhamento que recebeu do Espaço Pessoa ao longo dos anos. Quando aquela instituição abriu portas, em 1997, o contacto era feito através das equipas de rua, que lidam com a população que se prostitui. Gisberta, que em tempos havia feito espectáculos de transformismo em algumas casas gay portuenses, vendia o corpo na Rua de Santa Catarina. Nani Petrova, um dos travestis mais antigos da cidade, lembra mesmo que "Gis" chegou a actuar em bares míticos como o Sindikato e o Bustos, mas "não fazia do show a vida profissional, era mais prostituição".

Todos assinalam a beleza de outros tempos e a sua cordialidade: "Era uma jóia, uma pessoa muito bonita, parecia uma rapariga autêntica, maravilhosa", descreve Petrova, que a conheceu há "uns vinte anos".
Também Raquel Moreira não esquece a beleza de Gisberta, entretanto destruída pela doença e pela toxicodependência.





Gilberto Salce Júnior, ou melhor, a transsexual brasileira Gisberta foi assassinada na cidade do Porto, em Portugal, em fevereiro de 2006. Antes, durante dois dias, sofreu todo tipo de violência verbal e física, mantida sob cárcere, por um grupo de adolescentes (entre 12 e 16 anos de idade).
 
A "Balada de Gisberta", de Pedro Abrunhosa, restitui à personagem sua condição humana, destroçada; leva-nos, com tais informações extras, a pensar sobre as políticas públicas de segurança e respeito mútuo universais; e guarda de menores.

Cantada em primeira pessoa, a canção, com suas porções generosas de fantasia, realidade e delírio, pergunta: Qual é a participação de cada um de nós (ouvintes: tocados e chocados) neste monstruoso assassinato? O que motiva tais gestos? Corpo profanado pelas crianças-carrascos, que dizem estar "brincando", Gisberta exige resposta, ação e mudança coletiva e efetiva.

É com esta canção que Maria Bethânia fecha o primeiro ato de seu show Amor, Festa e Devoção (guardado em disco de mesmo nome, 2010). Transfigurada em Gisberta (a sem nome, sem sexo: só paixão e queda) a cantora imprime o tom mais que perfeito para marcar a saída de cena: quando perigo e encanto; alerta e convite nos envolvem.

Moradora de rua, arrastada, depois da tortura, para ser arremessada dentro de um poço d'água e morrer afogada, Gisberta é símbolo e signo de nossa condição (des)humana. Aliás, ela seria queimada viva, mas a água, ao invés do fogo, pareceu ser um final "melhor": já que o corpo afundaria, apagando para sempre a imagem de Gisberta e da "brincadeira infantil".

A água e seu mugido fez de Gisberta a sereia que não nos deixa esquecer o quão longe estamos do amor (potência sempre em desenvolvimento) coletivo. Se só o (trans)amor é real, Gisberta o chama: mesmo que ele esteja tão longe.
 
O amor é tão longe! Há limite para a brincadeira? Qual? O fato de Gisberta ser soropositiva e toxicodependente, como sugeriram alguns advogados? Quem matou Gisberta? A água ou as crianças?, perguntou o Ministério Público. Homicídio ou afogamento?

Importa mesmo saber? O fato é que todos (indistintamente) precisamos rever conceitos, pois, enquanto enche-se as micaretas LGBT, Gisbertas à mancheia morrem. Alguma coisa está fora da ordem faz tempo: militantes, ou não, precisam perceber isso.
 
"Perdi-me do nome, hoje podes chamar-me de tua", diz a Gisberta que fala na canção. Ela é uma legião: carrega na voz a multidão de marginalizados, que servem apenas para dançar em palácios, oferecer-se a mil homens, e logo depois ser descartados.

Urge responder à altura: dialogar e dizer a Gisberta que, acima dos fundamentalismos, ainda vale a pena e é possível sonhar e realizar dias melhores, sem juízos finais. Agora. Pois o céu da felicidade, de cada um e de todos, não pode esperar.
 

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Balada de Gisberta
(Pedro Abrunhosa)

"Perdi-me do nome,
Hoje podes chamar-me de tua,
Dancei em palácios,
Hoje danço na rua.
Vesti-me de sonhos,
Hoje visto as bermas da estrada,
De que serve voltar
Quando se volta p’ró nada.

Eu não sei se um anjo me chama,
Eu não sei dos mil homens na cama
E o céu não pode esperar.
Eu não sei se a noite me leva,
Eu não ouço o meu grito na treva,
E o fim vem-me buscar.

Sambei na avenida,
No escuro fui porta-estandarte,
Apagaram-se as luzes,
É o futuro que parte.
Escrevi o desejo,
Corações que já esqueci,
Com sedas matei
E com ferros morri.

Trouxe pouco,
Levo menos,
E a distância até ao fundo é tão pequena,
No fundo, é tão pequena,
A queda.

E o amor é tão longe,
O amor é tão longe
E a dor é tão perto."


Pesquisa realizada no blog Ser Feliz é Ser Livre
 

5 comentários:

lis disse...

Um pos't comovente e triste Hugo
E assim a vida se arrasta ... tantas imperfeiçoes na maneira de tratar com ela e sabendo-nos tão linda!
um abraço e saudades Hugo

Lorena Leina disse...

Oi Hugo,
Lembra de mim.
Pois é, passei um tempão sumida, mas vou arrumar tempo para voltar ao blog e visitar muito vc.
um abração!!

O Profeta disse...

Um sótão cheio de lembranças
Escrevi no pó palavras sem nexo
Retirei uma cartola de uma caixa de cartão
E senti ao toque o poder da ilusão

Ilusões…
Um cavalo de pau perdido ao carrocel
Uma estola de um bicho qualquer
Uma escultura talhada a cisel

Uma foto a preto e branco
De uma mulher sem rosto
Uma janela virada para nenhum lado
Uma traquitana a imitar o sol-posto

Terno abraço

jair machado rodrigues disse...

Olá Hugo, post comovente, duro e cruel, mas ao mesmo tempo nos tras importante reflexão...o que nos tornamos, o que será do ser humano daqui da forma que stá se conduzindo ? e a crueldade das criancinhas ? Lamentável, triste, muito triste, mas a vida segue, quando nos é permitido.
ps. Um imenso abraço.

EU ESCOLHO A LUZ !!!!!!!! disse...

Oi querido, te procurei no Face e não encontrei mas deixei lá um presente pra tu.Tô Hilda Barbosa lá no Face. Bora lá ver. Tudibãopratu. Beijocas, Namastê!